casa de bonecas, casa da dor
“Lamentar uma dor passada, no presente, é criar outra dor e sofrer novamente.” - William Shakespeare
quem poderá negar a miríade de sofrimentos que nos acomete ao longo de uma vida? nos jornais as notícias de guerras distantes, desastres naturais, catástrofes. aqui ao lado, as entranhas das ruas onde pulsam a violência, o abandono, a solidão. ambulâncias que chegam tarde demais, automóveis de aço frio esfacelando ossos sobre o asfalto quente. nos lares as tragédias íntimas em suas várias formas, as doenças silenciosas tomando o organismo palmo a palmo.
há ainda o Tempo. o Tempo é inexorável, é a força imbatível. dinheiro, sorte, circunstâncias da vida: tudo isso pode nos livrar de muitos males. menos do tempo. a bocarra de Cronos é larga demais, seus dentes são afiados, sulcando aos poucos a matéria, deixando suas marcas, rugas, riscos. sua saliva umedece de pó as coisas esquecidas, pó ao qual tudo se voltará na dissolução última. a Esperança, o mal angular da Caixa de Pandora, é a doença do Tempo, é um pôr-se em espera, e esperar é estar dentro do rio movediço das horas que correm, é sentir inteiramente os instantes, é ouvir o barulho que faz o desintegrar-se e reintegrar-se intermitente das coisas minúsculas. e isso dói. e se, para Nietzsche, esquecer é uma saúde, o mais saudável dos homens é aquele que esquece o Tempo, que nega a sua existência, que pode ver o clarão do dia, enxergar na luz, ao contrário de Funes , o personagem de Borges que procura os limites do quarto escuro, para se livrar da sua relação estreitíssima com Mnemósine. somos este corpo marcado por cicatrizes mais ou menos visíveis. todos nós carregamos chagas na alma, feridas sobre a pele. morremos a cada segundo e, no entanto, nada para de brotar para um novo trajeto de dor.
a vida é sofrimento e tem nele a sua natureza. diria isso Buda, Schopenhauer, diria isso Farnese de Andrade . para os três, separados espacialmente e temporalmente, o que só faz reafirmar a genealogia do desencanto , o drama seminal de Hamlet não suscita nenhuma dúvida, é facilmente, sem espaço para qualquer titubeio, respondido. não apregoo aqui qualquer pessimismo, mas sei que me servirá afirmar isso, entender essa afirmação, como a chave para participar do mistério que exsuda os objetos de Farnese de Andrade. e se falo entender, é porque só a compreensão desse olhar pode evitar que se reduza suas criações a esse espírito triste. assim acredito evitar, que num primeiro vislumbre, imaginemos a obra de Farnese como uma espécie sádica de desvalorização plástica da vida. o ponto fulcral da série de objetos de Farnese de Andrade reside justamente no contrário: sua criação se funda sob a égide de um olhar extremamente compassivo .
e se falo aqui de Farnese de Andrade é porque não conheço outro conjunto de obras que se aferre , de forma tão patética , a uma estética da tragicidade. pois que a dor, na obra de Farnese, ganha os contornos de beleza, mas de um tipo de beleza sem paralelos na produção de arte no Brasil. vislumbrar as caixas, gamelas, redomas, oratórios, é desvelar uma poética que nos captura, e afunda lentamente, nas questões de nascimento e morte... de vida enfim. ora, lembremos que dois dos irmãos de Farnese que, antes dele mesmo nascer, foram levados pelas torrentes de uma enchente que banhou aquela idílica Minas Gerais do início do século passado, povoaram como presenças, ainda que fantasmáticas, sua infância através das histórias que sua família contava constantemente. Farnese, portanto, com-viveu com seus irmãos mortos. (ali ainda, ele não sabia que a água voltaria a desempenhar papel preponderante na sua vida) e quando a grande bomba incinera os céus do Japão (violência absurda que marcou profundamente Farnese), ele deve aquela época, ter tido a sua epifania: ali também perdemos tudo. se cada vida que perece é um cosmo que se extingue, cada corpo estraçalhado é um universo em escombros, incontáveis mistérios foram aniquilados para sempre num simples apertar de botão.
dito isto, é pertinente conjecturar que Farnese foi rodeado, e escolheu se rodear, de tragédias. do íntimo ao universal, da perda dos irmãos aos milhares de mortos japoneses, rostos que ele não conheceu, mas que se alastraram, deixaram um rasto pairando no tempo, até chegar o momento de se deixarem cair e recobrir, como um lençol caindo sobre um móvel num cômodo desabitado, sua intensa produção objetal. e nada, desses objetos escolhidos, recolhidos na sua flanerie melancólica, nada nos choca mais, pode nos chocar mais, que a inserção laboriosa de bonecas cuidadosamente calcinadas e mutiladas, que o artista insere nas suas caixas e oratórios. são objetos prenhes de uma alma criada por um tempo perdido no próprio tempo, um tempo que não ocorreu sob o olhar dos homens , até que Farnese as encontrasse e as transfigurasse, um tempo ausente, mas que ainda assim existiu e escoou sobre elas, deixando os lastros acesos e vivos típicos da coisas que se perdem e trazem em seu âmago o indizível, o pacto de silêncio que tudo faz no tempo em que esteve só.
ainda assim as bonecas de Farnese falam. as bonecas mutiladas de Farnese falam. mas o que falam essas bonecas? decerto não falam mais o que falavam quando as crianças, suas antigas donas, lhes emprestavam a voz. mais certeza ainda é afirmar que elas não falam por algum artifício mecânico que dispara frases gravadas. não. não é aí que reside a eloquência destes objetos (caberá ainda chamá-las de objetos?). a voz que emite esses corpos é de uma outra ordem muito mais sinistra e profunda .
elegendo as bonecas como a representação destes corpos humanos que se esfacelam diante dos vagalhões de violência, natural ou não, do mundo, a obra de Farnese faz emergir todo um imaginário de morbidez excruciante. as bonecas de Farnese não são simulacros, pois se apresentam vivas, ou se apresentaram em algum momento antes da calcificação mortuária que se impõe a elas nas caixas e oratórios. estas bonecas não são metáfora, são metamorfose. penso que, se fossem brinquedos novos, adquiridos em qualquer loja de departamentos, não suscitariam sequer uma fagulha da descarga afetuosa que nos provocam. as bonecas de Farnese, caçadas pelos antiquários, ou em suas andanças de colecionador, possuem uma história própria, uma história indecifrável, porém extremamente palpável em seu peso acumulativo: o tempo vai somando narrativas insondáveis e as aderindo a matéria dos objetos perdidos: se debruçar sobre estas bonecas é comungar com um abismo, de onde se pode ouvir sussurros longínquos emitidos das profundezas. e diante deste chamado temos duas escolhas: fechar os ouvidos ou prestar atenção. para quem presta atenção , os sussurros adquirem cada vez mais volume e se tornam mais nítidos. para quem presta atenção as bonecas de Farnese de Andrade contam sua história. elas nos falam dos dias azuis e amarelos de uma infância aquosa, vítrea. nos falam de relicários, de baús e casas cheirando a tecidos mofados. nos falam sobre armários fechados e gavetas caladas. de risos felizes ou diabólicos, de choros contidos e berrados, de pequeninas mãos as acariciando ou as destruindo malevolamente. nos falam de dias e noites frias, de chuva, do barulho do mar. nos falam das coisas dos homens, mas também de uma solidão tão profunda que nenhum homem jamais poderá senti-la: a solidão dos objetos abandonados, perdidos, imprestáveis. e isso grava profundamente, como numa prensa, uma escrita que é própria do escoar: há marcas inscritas nos objetos de Farnese: grafias do tempo. escrituras inalienáveis, ranhuras, sulcos preenchidos de afeto. o tempo ali não passa através, como a luz na água. o tempo ali vai ficando retido , preso a uma trama de narrativas sobrepostas, um caleidoscópios de vozes, de gestos, de lugares.
se os míticos optogramas pudessem ser utilizados também nas bonecas de Farnese, que sorte de imagens presenciaríamos em seus olhos vidrados? há uma curiosidade logo embaçada por um temor mórbido nesta pergunta, pois inquirí-las nos parece que fazemos perguntas a um cadáver . e se é próprio da imobilidade o sossego, os olhos impassíveis das bonecas de Farnese, no entanto, contrariam essa afirmação: há ali algo que perscruta também quem a olha, um olhar lançado de volta, um olhar inquietante, trespassador mesmo, que parece querer nos dizer de coisas que preferiríamos não conhecer pois eles carregam em si, retinianamente, os padrões indissolúveis de algum desastre íntimo. e é aí que reside a chave pra esta mão dupla: o desastre também nos olha. o que não acontece uma única vez. o desastre vai se repetindo indefinidamente ao longo de uma vida, e nessa repetição vai escavando cada vez mais fundo até se enraizar, como veias, por toda extensão do corpo: um desastre em metástase . sim, estes olhos testemunharam o desastre. não me estranha, portanto, alguns deles terem sido arrancados, como um Édipo autoflagelado. estas órbitas vazias, escuras como grotas, fossas oceânicas, não merecem mais enxergar a luz do mundo, mas se tornam, como na parábola dos oráculos, capazes de dizer, habitadas de escuro, um futuro tão indestrutível, que não se desmanchará. as bonecas cegas de Farnese são vates mutilados preconizando tragédias inteiras, pois que todo vaticínio, para Farnese, é o dizer de uma extinção . se tomamos como certo que morrer é próprio dos trágicos, para Farnese, nascer era dar a luz a um desastre. as bonecas são seres entre estes dois momentos, pois nós, os homens também estamos todos, enquanto estamos, equilibrados entre estes dois pólos.
nascer dói. é melhor não por uma criança no mundo, pois é um ser destinado a ser afligido por infinitas possibilidades de sofrimento. isso afirmava Farnese. e suas bonecas lembram fetos, recém-nascidos destroçados, queimados, ou ainda mais inquietantes, as redomas de poliéster com que Farnese acobertava algumas dessas bonecas, nos fornecem a imediata relação com os frascos de formol onde repousam os restos de um cadáver. nada pode ser mais forte que a imagem de uma criança morta: uma boneca morta é uma criança morta . as bonecas de Farnese reafirmam que nascer já é morrer, que viver é não conseguir, que vir a luz é a primeira dor e o desastre vitalício. o desastre nos retira a voz, por isso nascemos balbuciantes. muitos, numa espécie de mecanismo psíquico de defesa, esquece este desastre-primeiro, por isso não poderemos lembrar nunca o momento de nosso próprio nascimento. o desastre, em seu anseio por não deixar testemunhas, em exterminar seus participantes, encontra um impeditivo nessas bonecas: elas sobrevivem pra contar. ainda que falem do lugar do silêncio, falam, dizem. impregnadas dessa pulsão de morte que as obrigaria a se repetir, se repetir e se repetir, pois o trauma reside fora do tempo, ela se erguem, e em sua assunção de condenadas, afirmam a quem as contempla: isto és tu.
a inserção destas bonecas em antigos oratórios de madeira, algumas acompanhados de santos católicos e símbolos da cristandade, anunciam uma sacralidade, que poderiam ter motivos encontrados nas raízes católico-mineiras de Farnese. mas não há um paraíso de paz esperando estas bonecas: sob o jugo intransigente da metempsicose, a vida que se extingue continua em outras vidas, mantendo a incessante roda de sofrimentos e ascese constantemente a girar: tudo continua sempre.
as bonecas de Farnese tiveram uma infância antes de serem inseridas, como corpos conservados, em seus objetos. crianças já as possuíram, já lhe imbuíram de personalidade e voz. mas as bonecas de Farnese se erguem para além desse ventriloquismo: ali, encaixadas nas assemblagens enigmáticas, elas adquirem voz própria. as bonecas já nasceram e morreram, mas triunfaram sobre as duas formas definitivas de mudez: elas falam uma fala mais ancestral, mais profunda, sobre o que é nascimento e morte, sobre essas duas circunstâncias cuja experiência nos é insondável, portanto indizível. há uma linguagem de dor ali, linguagem eloquente que vai para além da sonoridade verbal, mas que ecoa pelas concavidades ocultas da nossa corporalidade e nos diz de raízes tão fundas e ontológicas que, decifrar uma linguagem dessa espécie, olhar nos olhos das bonecas de Farnese e ali se perder, é comungar com a origem das coisas, mistérios da infância do homem e do mundo, e talvez, no lampejo deste jogo, participar da trama tecida pela natureza inteira.
Fonte:
http://lounge.obviousmag.org/no_escuro_alguma_falena/2014/07/casa-de-bonecas-casa-da-dor.html
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